Onze anos de embates judiciais chegaram ao fim com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que considerou inconstitucional a prática da carcinicultura em áreas de manguezal. A decisão histórica, publicada este mês, atendeu ao recurso extraordinário apresentado pelo Ministério Público do Rio Grande do Norte contra a Lei Estadual nº 9.978/2015. Essa legislação permitia a instalação de empreendimentos de carcinicultura em manguezais, contrariando o Código Florestal e o compromisso nacional com a preservação ambiental.
O STF deu provimento ao recurso por maioria de votos, destacando a primazia da União para estabelecer normas gerais em matéria ambiental. Para o tribunal, a lei estadual invadia competências federais ao autorizar a carcinicultura em Áreas de Preservação Permanente (APP), violando o artigo 24 da Constituição Federal. Além disso, a decisão reafirma a proteção integral dos manguezais arbustivos e seus processos ecológicos, conforme previsto no Código Florestal (Lei nº 12.651/2012) .
Marjorie Madruga, procuradora do Estado do Rio Grande do Norte (RN) da Procuradoria do Patrimônio e da Defesa Ambiental (PPDA/PGE-RN), enfatizou a relevância dessa decisão em um contexto de emergência climática.
“O sistema manguezal não é importante apenas pela biodiversidade. Ele também protege a costa contra o avanço do mar, o que é essencial em tempos de elevação do nível do mar. Permitir a destruição de manguezais em nome da carcinicultura é um absurdo sob qualquer perspectiva”, afirmou.
Os manguezais são reconhecidos como berçários de biodiversidade, mas também cumprem funções cruciais, como a retenção de carbono e a proteção de ecossistemas costeiros. Para Marjorie, a destruição dessas áreas ao longo das décadas, inicialmente pela indústria salineira e, posteriormente, pela carcinicultura, comprometeu gravemente o equilíbrio ecológico. Ela lembrou que, até 2012, o sistema manguezal — incluindo apicuns e salgados — era integralmente protegido como APP pelo Código Florestal. Porém, com a revisão da lei naquele ano, áreas como os apicuns foram liberadas para exploração, resultado de um intenso lobby do setor produtivo.
“Foi um retrocesso gigantesco. No Rio Grande do Norte, o setor não se contentou em ocupar apicuns e salgados. Ele avançou para tentar legalizar a destruição dos manguezais arbustivos. Primeiro, tentaram aprovar uma resolução no Conselho Estadual do Meio Ambiente, mas a mobilização de pescadores, ONGs e Ministério Público Federal impediu. Após essa derrota, buscaram a Assembleia Legislativa para aprovar a famigerada Lei Cortez Pereira”, explicou a procuradora.
A batalha judicial, iniciada em 2013, refletiu uma resistência constante por parte de ambientalistas e cientistas, que alertaram sobre os danos irreversíveis da carcinicultura nos manguezais. Mas, em 2015, o governo estadual, sob intensa pressão de setores econômicos, sancionou a lei que flexibilizava a proteção ambiental, justificando o ato como um meio de incentivar a economia local. Foram necessários quase dez anos para que o STF corrigisse o que Marjorie classificou como um dos maiores retrocessos ambientais do RN.
“O tempo da Justiça não é o tempo do meio ambiente. Durante esses anos, o IDEMA licenciou empreendimentos em áreas de manguezal, resultando em perdas irreparáveis de serviços ecossistêmicos. Agora, teremos de esperar anos para que esses ecossistemas possam se regenerar”, alertou.
A decisão do STF também expõe as fragilidades no argumento de segurança jurídica defendido pelo setor privado. Para Marjorie, legislações inconstitucionais criam apenas um falso senso de estabilidade.
“Mais cedo ou mais tarde, essas leis são derrubadas. Não existe segurança jurídica em normas que violam a Constituição e as leis ambientais federais. Precisamos aprender com esse episódio para evitar novos retrocessos,” concluiu.
Nesse sentido, a procuradora destacou que outro ponto importante é a revisão da Lei nº 272, em discussão atualmente. A lei dispõe sobre a Política e o Sistema Estadual do Meio Ambiente, as infrações e sanções administrativas ambientais, as unidades estaduais de conservação da natureza, e institui medidas compensatórias ambientais
“É fundamental que esse processo seja orientado pelo princípio da proibição de retrocesso, respeitando os limites estabelecidos pelas legislações federais. O Estado não pode ceder à pressão para flexibilizar normas ambientais, pois isso só resultará em mais retrocessos, como foi o caso da Lei Cortez Pereira”, avaliou.
Para Marjorie, a vitória no STF destaca a importância de estabelecer limites claros e definitivos para a exploração ambiental.
“Não podemos continuar permitindo que o direito de destruir o meio ambiente prevaleça. É uma decisão que merece ser celebrada e que representa um passo importante na construção de políticas públicas que integrem as dimensões ambiental, climática, social e econômica”afirmou.
A decisão ocorre em um mês emblemático, com debates sustentáveis em destaque na COP24, no Azerbaijão.
Alexandre Wainberg
Alexandre Wainberg, biólogo marinho e empresário do ramo da carcinicultura, foi lembrado por Marjorie como um pioneiro da carcinicultura sustentável. Fundador da Primar, em Tibau do Sul, Alexandre se destacou por promover um modelo de cultivo de camarões e ostras sem o uso de químicos, pesticidas ou hormônios, buscando reproduzir um ambiente natural para as espécies. Seu trabalho, que visava a redução do estresse dos animais e o aumento da sua sobrevivência, fazia parte de uma visão mais ampla de um modelo sustentável de carcinicultura. Ele foi assassinado em 2015, em um episódio trágico que interrompeu sua contribuição para o setor e para a defesa de práticas ambientais responsáveis.
Denúncia
Em janeiro de 2023, a reportagem da Agência Saiba Mais presenciou as ameaças ao bioma com a prática da carcinicultura na oitava Zona de Proteção Ambiental de Natal. Uma área de mangue que vinha sendo recuperada com ações de plantio desde 2016 foi totalmente devastada para uma forma de negócio voltado para a criação de camarão em cativeiro. Apesar das denúncias protocoladas na plataforma do Ministério Público, as ações desmatamento não sofreram interrupção.
Nossa equipe conversou com um pescador, morador da região desde 1988, que por questão de segurança teve sua identidade preservada.
“Eu pescava todo dia aqui, pegava isca, pegava ostra, pegava tudo aqui. Eles vieram e cortaram tudo, o mangue todo. Isso não existe, não é para cortar o mangue. O pescador vive disso aqui. Se cortar o mangue o pescador vai viver do quê?”, denunciou o trabalhador que vive da Camboa do Jaguaribe a décadas.