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potiguar espalha o frivião nordestino na Europa

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Para contar sobre o frivião que Juliana Linhares espalhou pela Europa, não precisei de uma entrevista. Não precisei da coreografia previsível de perguntas anotadas, gravador ligado (hoje seria celular) e consentimento gravado. Bastou estar ali, no parque municipal da pequena Ovar (uma cidadezinha ao norte de Portugal que até muitos portugueses nem conhecem), onde Juliana fez o primeiro de uma série de três shows em uma pequena turnê europeia que passava por Portugal e Espanha.

Bastou vê-la entrar em cena, rasgando o ar com uma presença que se impõe. Bastou vê-la atravessar o palco com o corpo no compasso de algo maior que ela mesma — algo que vinha de dentro, mas respingava em todos. Bastou observar o instante exato em que a voz dela não apenas saiu, mas redesenhou o espaço. Juliana não entrou em cena para ser recebida. Ela foi o acontecimento. E bastou ouvir. Ouvir o que vinha do palco, sim. Mas também o que vinha depois — o que ficava. Porque o frivião que Juliana causa contamina, se instala e não se explica. É simples: ou se sente ou se sente.

Na tarde do último dia 12/07, em Ovar, Juliana Linhares se apresentou no Festival Sons da Lusofonia. Era tarde, e a cantora potiguar rasgou a luz do sol com o figurino que reinventa as simbologias do Nordeste. Entre as cangas no chão e os olhares curiosos de quem ainda não sabia o que viria, escutei as primeiras reações do público. “Está a começar a brasileira!”, informava uma portuguesa por telefone a alguém do outro lado do telemóvel (celular). Quase em silêncio, a plateia ouviu as primeiras das 13 músicas do repertório.

Vi o público se levantando aos poucos das cangas espalhadas no parque onde ocorria o show, como se o corpo entendesse antes da cabeça. Vi alguns que não dançavam, mas deixavam os ombros responderem. Vi crianças pararem de correr para assistir. Ao final, todos estavam no frevo.

Aqui deste lado do Atlântico, o bis é algo desconhecido. Acabou o show, todos seguem a vida. Mas não foi o que ocorreu com Juliana. Ao lado do palco baixinho, ela viu se aglomerar alguns portugueses e brasileiros que a viram em cena pela primeira vez. Era um descobrimento. “Lembras o meu cantor favorito do Brasil: Ney Matogrosso”, disse um português com cara de alumbramento. E continuou: “Ainda vais ser muito conhecida no mundo”, profetizou. “Vamos tirar uma foto com ela… nos próximos anos vamos precisar pagar 50 euros para ver o show dela”, provocou outro, meio rindo, meio prevendo.

Quando o palco vira travessia

Juliana Linhares não interpreta. Ela tensiona. Não representa um lugar, representa a vibração do chão que pisou. Sua presença em palco não é performance. É deslocamento. É frivião — essa palavra sem tradução que arde no corpo antes mesmo de virar música. Nos shows na Europa, a artista potiguar cruzou o oceano sem necessidade de legenda. Fez o público português ouvir com o corpo.

Depois de Ovar, o frivião de Juliana seguiu viagem. Embarcou sem mala, mas com tudo: o risco, o corpo, a voz e aquele tipo de presença que não se dobra à geografia. Foi para Madri. Pelas redes sociais ela foi registrando os passos: dividiu palco com a espanhola Lakarmento, criou um espaço de troca onde os ritmos não apenas conviviam — se atravessavam. Adaptou o show e o figurino, apontando para outra característica: a metamorfose. Pelas fotos compartilhadas da noite, os olhos — sempre famintos.

Entre um show e outro, trocamos breves mensagens por WhatsApp: peço a lista de músicas do show (ela envia), pergunto por que no Instagram Juliana se transforma em Xuliana (foi uma brincadeira que foi ficando, responde), pergunto se os shows da Europa iniciam algo mais amplo fora do Brasil: “Estamos organizando a carreira internacional aos poucos, mas tenho muito interesse em viajar mais para fora com o trabalho novo”, revelou.

O terceiro show da breve e intensa turnê foi novamente no norte de Portugal. A cidade de Amarante recebe anualmente o MIMO Festival — e o sucesso do show se espalhou também pelas redes de brasileiros e portugueses. Juliana não chegou como mais um nome na programação. Chegou como quem tem lugar.

A resposta do público foi direta: celulares erguidos — mas não para registrar. Para guardar. Porque há artistas que provocam memória, e há artistas que viram memória. Juliana fez as duas coisas. O MIMO foi um ponto final em forma de vírgula. Um encerramento que, na verdade, empurra a história para diante. Quem viu, sabe. Quem não viu, vai ouvir falar.

Três cidades, três atmosferas, três Julianas. E um só traço comum: o arrepio provocado pelo que o Nordeste tem de mais intraduzível — o frivião.

Entre a playlist de Caicó e o palco do mundo

Nesta parte da matéria, recorri a pesquisas de entrevistas de Juliana à imprensa brasileira e a amiga caicoense Suerda Medeiros. “Mulher, Juliana é minha prima, também sou Linhares… o pai dela é de Caicó, somos dos Linhares ali das bandas de Pombal. Ele era da Petrobras, a mãe, dentista. O irmão é dos melhores oftalmologistas do RN e ela, das mais modernas artistas que o Brasil tem hoje”, resumiu a minha amiga em audio de whatsapp.

Nas leituras que fiz, fui observando as frases ditas por Juliana que falam sobre o seu modo de estar e transformar o mundo. Ela canta o mundo com sotaque nenhum. Ou melhor: com todos. Potiguar de Natal, de sangue caicoense, cresceu ouvindo de tudo. E nos nomes de artistas citados por ela em entrevistas, posso dizer que todos estariam nas listas de músicas tocadas pela Rádio Rural de Caicó dos anos 70/80. Sabe aqueles cantores que resistem ao tempo e endoidecem IAs?

Essas referências deixaram rastros no trabalho de Juliana. Hoje, é difícil encontrar uma artista brasileira contemporânea que misture com tanta naturalidade o épico e o íntimo, a fala do sertão e o desejo do mundo. Depois de rodar o país com o elogiado álbum Nordeste Ficção, lançado em 2021, Juliana fincou os dois pés no palco — e no tempo presente, sempre reinventando o agora. Os shows da Europa foram adaptações desse espetáculo: canta a terra, mas não se limita a ela.

A potiguar não escolheu ser cantora — ela foi engolida por isso. Aquela menina que recitava poemas, a adolescente que cantava a pedido do pai, a moça que apareceu em inaugurações improvisadas em Natal: todas essas versões da mesma pessoa foram levadas para o palco pela força do impacto. No primeiro show de improviso, cantou Cartola, tomou conta da noite e conquistou a primeira notícia em jornal: “Juliana é uma grata surpresa para Natal”.

Para sobreviver da arte, cantou sambas e bossas com letras copiadas na mão e sem voz educada para a profissão. Estudou teatro, produção — até que o cantar puxou com mais força: decidiu estudar canto para que a voz deixasse de ser apenas uma expressão por instinto e virasse instrumento consciente e capaz de significar. Aprendeu que cantar não é colar versos, mas escutar-se.

Quando descobriu sua voz, não quis mais apenas servir de caixa para músicas alheias. Precisava compor, porque só assim seria ouvida — não como intérprete, mas como voz própria. Desde 2016 ela se empenha nesse trabalho emocionalmente pesado. Sem vergonha (com o melhor que esta expressão possa significar), ligou o modo “foda-se solitário” e mandou uma letra a Chico César — que virou parceiro. Entrar no autoral foi um salto de sobrevivência emocional, especialmente durante a pandemia, quando chegou a gravar melodias no celular sem nem ter voz para falar.

Mudou para o Rio, estudou teatro, fez arte com o grupo Pietá. Em março de 2021, lançou seu primeiro álbum solo, Nordeste Ficção — disco múltiplo, fruto dessa travessia barulhenta. São 11 faixas, nove inéditas e duas releituras (como o clássico “Tareco e Mariola”), costuradas com forró de casa, poesia nordestina inventada e intercâmbio contemporâneo com artistas como Letrux, Zeca Baleiro e Chico César.

Em seu show que rodou o Brasil e agora pisa em outros palcos pelo mundo, leva a estética teatral e irreverente. Parafraseando o poeta Manoel de Barros, o Nordeste que Juliana não inventa, não existe. Tenho certeza dessa realidade inventada porque a vi no palco. Mesmo para mim, que sou lá de Caicó, nascida na maternidade Mãe Quininha — que, junto com Juliana, fui a única a saber o significado de todas as palavras de “Tareco e Mariola” naquele show em Ovar — acredito nesse Nordeste que eu nunca tinha visto, mas que sempre esteve dentro de mim e foi materializado pelo corpo, voz e presença de Juliana.

Neste Nordeste, não tem apenas chita e flor no cabelo — tem brilho que concorre com o sol. É um Nordeste performático, afinado. É linguagem. É política. É rastro. É terra. É céu. É ruído. É risco. É mar. É terra rachada. É tareco. É queijo de manteiga. É bordado. É lantejoula. E é infinito.

Este Nordeste sempre se reconhece. “Uma alegria ver uma pessoa de Caicó na plateia”, escreveu Juliana na mais recente mensagem que trocamos por WhatsApp para materializar este texto.

Por que frivião?

Perguntei ao Chat GPT o que era um “Frivião”. Ele respondeu que “parece ser uma palavra inventada, possivelmente uma combinação de “frivolidade” e “furacão”, usada na música da artista brasileira Juliana Linhares para descrever uma inquietação, uma vontade de se mexer e uma energia que não se deixa abater.”

A música “Frivião” encerra o show de Juliana Linhares:

“Em toda forma de amor há motivo pra gente lutar
O coração na canção grita que assim não dá não
Tradição, mutação vida e evolução
O frivião que não deixa se aquietar”

A  gente entende. Não com a cabeça — mas com os pés. O frivião de Juliana é urgência sem tradução. É calor em forma de som. É o nome que o Nordeste dá ao que só o corpo entende.

Em um vídeo no Youtube, ele pede a ajuda do pai para explicar o que é “frivião”. Entenda aqui:

https://www.youtube.com/watch?v=HZC2VPEP__M&list=PLAHMFCHGBY9KM7FAB9BB3SA6HFJVSVX0Z&index=12

🎵 Ouça Juliana Linhares | Nordeste Ficção

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▶ ️ Ouça as músicas do show apresentado na Europa


👉 Meu nome é Cledivânia Pereira. Sou jornalista de Caicó/RN e escrevo de Lisboa. Neste blog, conto histórias de potiguares espalhados pelo mundo 🌍 — pessoas que, mesmo longe de casa, continuam levando suas raízes no gesto, na fala e na forma de seguir 🌾✈️.
Se você conhece alguém do Rio Grande do Norte vivendo fora do Estado que tenha uma boa história para contar, me escreva: (email protected). Vou adorar saber — e, quem sabe, contar 💌✨.


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