|
Getting your Trinity Audio player ready...
|
Estar sentada em uma roda com mulheres que desafiaram as ditaduras do Brasil, do Uruguai e da Argentina foi uma experiência política e uma travessia histórica que me atravessa como filha, como militante, como brasileira e como latino-americana. Por instantes, a memória deixou de ser passado para ocupar o seu lugar de presente em disputa — e se tornou corpo, voz, cicatriz e resistência.
No Centro Cultural Manoel Lisboa, em Recife, nos reunimos convocadas por um grito coletivo: por uma América Latina livre. Um encontro realizado pelo Comitê de Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia de Pernambuco e pelo próprio Centro Cultural, que não apenas abriu espaço para a escuta, como também construiu uma ponte entre gerações e países em torno da justiça de transição e do enfrentamento da impunidade que atravessa o continente.
Escutar as companheiras uruguaias foi como ser sacudida por um terremoto da história.
Alice Fay Dessent, presa política, é hoje referência na rede nacional de sítios de memória do Uruguai. Sobreviveu ao Presídio Feminino Cabildo, um espaço de repressão brutal, onde dezenas de mulheres foram encarceradas por sonhar com um país livre. Ana Elena Casamayou del Pino, fotógrafa e militante, também foi presa nesse presídio. Ali dentro, usaram o corpo como fronteira de resistência: mantiveram-se inteiras enquanto o Estado tentava desumanizá-las.
Maria Luz Osimani, professora e integrante da Crysol, também foi encarcerada e torturada. Hoje, transforma sua vivência em instrumento de reparação e luta coletiva. Com ela, Lídia Escalante e Francisco Arrua — ambos argentinos — carregam nas palavras e nos olhos as marcas da concentração de horror do Campo de Mayo, o maior centro clandestino de detenção da Argentina. Lídia atua na Comissão de Recuperação da Memória daquele lugar; Francisco, como técnico em comunicação, segue transformando silêncio em denúncia.
E com elas, também nós, brasileiras.
Mulheres como Lília Godim, presa no Convento do Recife, onde funcionava o Presídio Feminino Bom Pastor — lugar de tortura disfarçada de clausura. Com ela, estiveram presas Teresa Vilaça, Helena Serrazul, Eridan Magalhães e Vera Rocha — todas vítimas da máquina de repressão que também foi alimentada por mãos brasileiras, inclusive na Operação Condor.
Essa aliança de terror entre as ditaduras do Cone Sul, que envolveu diretamente o Brasil, articulou prisões, torturas e desaparecimentos entre fronteiras. E escutar essas mulheres hoje é entender que não falamos do passado, mas de uma memória viva — que sangra e pulsa no presente.
Falo aqui também como filha de Glênio Sá — comunista, guerrilheiro do Araguaia, torturado, perseguido mesmo após a redemocratização e, enfim, executado politicamente em 1990. Falo como parte do Coletivo Nacional de Filhos e Netos por Memória, Verdade e Justiça, que existe para denunciar que a ditadura não acabou: ela se reconfigurou. E se alimenta da impunidade.
Essas histórias não cabem nos livros oficiais. Elas vivem no corpo de quem sobreviveu e de quem herdou o trauma, como nós — mulheres, filhos e netos que transformam dor em luta, lembrança em denúncia.
Enquanto escutávamos aquelas mulheres falarem, cada uma com sua forma de dizer o indizível, éramos atravessadas pela potência de saber que estamos em muitos. Que, apesar da tentativa de silenciamento, da negação — seguimos aqui.
E seguimos porque temos a memória como arma política. Seguimos porque sabemos que a justiça de transição é uma dívida histórica. Seguimos porque vemos os retrocessos se anunciarem — como no Brasil do fascismo recente ou na Argentina de Milei, que relativiza o número de desaparecidos e ataca as políticas de memória.
Nossa luta hoje é para que nenhuma ditadura volte a nascer em solo latino-americano. Para que a democracia seja mais do que o direito ao voto — seja o direito à memória, à verdade, à justiça e à reparação. Estamos aqui para lembrar que os corpos que resistiram ao regime são também os corpos que seguem em marcha, exigindo justiça para ontem e para amanhã.
Por isso, encontros como este são fundamentais: porque reatam os fios da história, porque nomeiam as violências, porque constroem pontes entre quem sobreviveu e quem herdou as marcas da repressão.
É pelos que vieram. É pelos que virão.
E porque ainda estamos aqui, não deixaremos ninguém esquecer.
(Tagstotranslate) Blog-Jana-SA
Confira o conteúdo original aqui!
