Em um desses festivais literários de Natal, perguntei a Ruy Castro como foi conviver com Nelson Rodrigues, na redação do jornal O Globo. Enquanto autografava meu exemplar de “Estrela Solitária”o biógrafo do jornalista pernambucano explicou que era como se Nelson passasse o dia interpretando a si mesmo. Um personagem, um gênio incompreendido.
Volonté, nossa flor de obsessão do Beco da Lama, tinha um perfume rodrigueano.
Por mais tímido que fosse, ninguém ficava indiferente à presença do Poeta. Volonté chegava e, mesmo quando não se aproximava, logo se fazia notado. Cigarro na boca e aquela cara de ódio do mundo, mirando alguém, o governo ou sabe-se lá que porra tenha tirado o Poeta de tempo.
Mas entenda: não era aquela cara de raiva que dá e passa, não. Manoel Fernandes Volonté atualizou com sucesso as definições de “ficar puto”, irado. E ainda vinha de fábrica com um plano infalível arquitetado para quebrar na porrada quem atravessasse seu caminho.
Um senhor personagem da vida cotidiana natalense.
Por sorte, sempre havia alguém por perto lhe pedindo calma. Então, o Poeta ajeitava a velha calça jeans surrada, acendia o que parecia ser sempre o mesmo cigarro, tomava um gole de cerveja e, assim, as placas tectônicas da Cidade Alta voltavam à normalidade.
Volonté tinha guardada na ponta da língua sempre uma bala apontada na direção de um inimigo. Um verbo que ameaçava explodir a cabeça de algum adversário ou um verso que humilhava o próximo canalha da lista.
Ah, os canalhas. Como ousaram perturbar o Poeta. Todos abatidos, diga-se de passagem, alvos do deboche, das ironias e das farpas atiradas sob a mira certeira.
Volonté vivia e interpretava todas as fases da lua em poucos segundos. Ao apontar na esquina, não tinha um cidadão, por mais tranquilo e sereno, que não levasse a mão na cabeça e pensava em silêncio:
“Puta que pariu, será que hoje vai ser comigo?”
Coisa de quase 20 anos, corri iminente risco de morte. Eu trabalhava na finada Tribuna do Norte e morava num prédio em frente à igreja dos Pretos do Rosário. Sem exagero, devo ter bebido quase todas as cervejas do bar de Nazaré e do Bardallos porque até hoje eu lembro daquela ressaca.
Atrasado, próximo das 9h, descia a pé a ladeira da antiga Junqueira Ayres, já perto da Funcarte. Pelo calor, devia ter um sol para cada funcionário do jornal. Em sentido contrário lá vinha Volonté andando daquele jeito, devagar e sempre. Minha cabeça latejava, o suor escorria e os poucos neurônios acordados àquela hora da manhã não conseguiram me informar a tempo o nome daquele cidadão de estatura baixa, moreno e de cabeça branca que subia na minha direção. O nervosismo chegou ao ápice quando, a uma distância de uns 30 metros, ele parou, abriu os braços como quem fosse me dar um abraço, e gritou:
– RA-FA-ELE IRIA!
Quase que por impulso, meus neurônios se conectaram aos fios errados e só deu tempo de retribuir os braços em cruz e soltar um sonoro:
– VA-TE-NOR!
Misericórdia. Eu vi a cara da morte e ela estava viva, como escreveu Cazuza.
– Vá te fuder, porra !, devolveu o Poeta.
Fiz por merecer. Nesse dia finalmente entendi por que a Marajó movida a álcool do meu pai demorava tanto para pegar de manhã cedo. E também descobri que o medo reconfigura o cérebro:
– Ô Volonté, rapaz, estou brincando contigo, cara !
E ele riu, nos abraçamos, curei o porre ali, ele seguiu subindo e lá fui eu descendo para o jornal.
A vida toda Volonté foi vítima de pré-julgamentos. Mas viveu como quis, cercado de livros, poesia e amigos. Não tenho dúvidas de que o Poeta amava quem admirava. Sentimento recíproco, aliás.
Durante um período, Volonté apareceu no Beco com um violão lindo e de cordas bem macias. Ele adorava tocar.
Aliás, um parênteses.
Eugênio Cunha, o general da Bandagália, tem uma história maravilhosa sobre o dia em que o Poeta Volonté acompanhou ao violão ninguém menos que Nana Caymmi numa noite de cerveja na casa dele, na Redinha.
Uma tarde no Beco, Volonté notou meu encanto pelo violão e disse que, fazia algum tempo, estava já pensando em comprar um novo instrumento assim que saísse uma grana extra, fruto do Plano de Cargos e Salários da Fundação José Augusto, onde era lotado:
– Assim que eu comprar um violão novo esse aqui é seu, mandou na lata.
É claro que eu não acreditei no Poeta. Não que eu duvidasse da generosidade dele, mas sabe como é, Volonté é Volonté. Poderia mudar de ideia, esquecer ou dizer que nunca prometeu nada, que nunca disse aquilo.
Voltei a encontrá-lo na semana seguinte e, para minha surpresa, ele repetiu o gesto.
– Está certo, Volonté. Vou esperar, hein?, era o que eu repetia da boca para fora, sem qualquer ilusão.
Um dia, no meio do expediente na finada Tribuna do Norte, toca o telefone na mesa. Era Volonté, de algum orelhão de ficha, no Centro da cidade:
– Vai passar no Beco hoje à tarde ?
– Não sei, porquê?
– Já comprei o violão que eu queria, venha pegar o seu.
E desligou.
Saí do jornal, cheguei em Nazaré, pedi uma cerveja e dali a pouco o Poeta aparece com o violão a tiracolo:
– Tome, é seu.
– Mas você vai me dar esse violão mesmo?
– Eu não disse a você que daria? É seu. Já comprei o que eu queria.
Foi assim, tudo muito rápido, como quem chupa um chicabon. A ficha demorou alguns dias a cair. Desde então, entendi como uma declaração de amor, um gesto de carinho dos mais sinceros, generosos e bonitos que já vi. Sem pedir nada em troca. Dinheiro, elogio, cerveja, nada. Absolutamente nada.
Dali em diante, quase sempre que nos víamos, Volonté me perguntava sobre seu antigo companheiro. Tempos depois mudei de cidade, mas deixei o violão sob a guarda de dois guardiões do mesmo afeto de que é feito o Poeta.
Faz alguns anos, o violão, a quem chamamos carinhosamente Volonté, é o personagem principal das farras da casa de Cris e Eugênio Meio Quilo.
Toda vez que alguém toca, o Poeta aparece.
Porque Volonté está vivo.
E, acredite, continua muito puto da vida.