|
Getting your Trinity Audio player ready...
|
Ao contrário do que apregoa o discurso da harmonia artificial entre classes, é precisamente o conflito- quando politicamente assumido- que pode reacender a esperança democrática. A verdade incômoda é que vivemos sim um tempo de “nós contra eles”. E a pergunta que fica é: vai encarar? Desde a eleição de 2018, quando Jair Bolsonaro fez um discurso antisistema para derrotar Fernando Haddad, o campo conservador percebeu a força política do ressentimento social e da antipolítica. Em 2022, Lula venceu, mas não houve trégua: ainda antes de sua posse, a campanha para 2026 já havia começado e impulsionada por uma máquina de deslegitimação permanente, operada sobretudo nas plataformas digitais, mas amplificada pelos meios tradicionais. O governo não teve nem tempo de começar; já decretavam seu fim. Isso não ocorreu apenas com Lula: também a governadora do Rio Grande do Norte tem enfrentado, desde o início, uma ofensiva contínua para destruir sua legitimidade. O objetivo? Criar uma percepção de que estamos diante de governos “em fim de feira”. Não há espaço para mediações quando as elites econômicas e políticas, orbitando em torno da Faria Lima, se divorciam completamente do chamado andar de baixo. O que temos, então, é luta de classes — mas não aquela clássica, entre burguesia e proletariado. O cenário econômico, social e cultural é outro. De um lado, estão os precarizados: trabalhadores uberizados, os fatigados pela escala de trabalho 6×1 e jovens desesperançosos. Aqueles que buscam um milagre econômico que nunca chega, mas que acreditam de que podem ainda ser “empreendedores de si”. De outro lado, uma casta protegida por privilégios institucionais,subsídios fiscais e uma representação política distante da vida cotidiana do povo. O Congresso transformou-se numa Maria de Fátima sem qualquer limite ético e moral. Para lembrar a icônica personagem da novela Vale Tudo, que nos ensina que o Brasil é feito de Odetes Roitman e de Raquéis. Ricos e pobres. Cínicos e utópicos. Nós e eles. O campo democrático precisa assumir politicamente esse antagonismo. Não se trata de fomentar o ódio de classe, mas de reconhecer que o país já está dividido e que a omissão favorece o poder do andar de cima. O discurso da conciliação abstrata, tão caro à grande mídia, apenas reforça o status quo. Como acusar a esquerda de dividir o país se a própria estrutura econômica o fratura todos os dias?
Recentemente, o Congresso, controlado pelo Centrão, derrubou a taxação do IOF-favorecendo os mais ricos-, ampliou o número de deputados e manteve os privilégios do Judiciário. Enquanto isso, a proposta do governo de isentar do Imposto de Renda os que ganham até R$ 5 mil beneficiaria 25 milhões de pessoas. É disso que se trata. São apenas 140 mil brasileiros que passariam a pagar mais impostos, num país com mais de 200 milhões de habitantes. Ainda assim, tentam vender a ideia de que esse é um governo populista e fiscalmente irresponsável. Que democracia é essa que protege 140 mil e ignora milhões? Segundo o instituto Quest, cerca de 10% da população brasileira se define hoje como “antisistema”. Oscilam ideologicamente de acordo com as ondas mediáticas e com os discursos prometeicos de líderes de ocasião. Mas ao contrário do mito original, que nos lembra o sofrimento de Prometeu por oferecer o fogo aos homens, essas pessoas não se importam com o sacrifício. Apenas desejam sonhar com prosperidade, mesmo que sem justiça social e pactos coletivos. É essa fantasia que a política democrática precisa compreender e disputar. Não se trata de competir com o populismo reacionário com base na raiva e no grito, mas de reencantar o espaço público com outra promessa: a da liberdade partilhada. Como disse Hannah Arendt, a política é o lugar onde o milagre acontece: onde, a cada novo ato, os humanos recomeçam. A política deve ser o espaço da pluralidade e da esperança. Por isso, está na hora de Lula- como populista democrático que é- retomar o fio da esperança, não como promessa de harmonia, mas como afirmação corajosa do conflito. Contra a maré do cinismo e da desilusão, é preciso olhar para os que estão cansados de sobreviver. E dizer com clareza: sim, é nós contra eles. E, desta vez, estamos dispostos a lutar pelo milagre democrático da justiça e da dignidade humana. Vai encarar?
