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Aos quase 90 anos, com mãos marcadas pelo barro e pela memória, Maria Gonçalves, conhecida em toda a comunidade de Coqueiros como Maria Fogo, segue moldando mais do que potes, filtros e panelas. A mestra ceramista molda histórias. Em um Rio Grande do Norte que ainda convive com o apagamento de seus povos tradicionais, ela se firma como um dos últimos pilares da cerâmica artesanal de base ancestral na zona rural de São Gonçalo do Amarante.
O barro que Maria amassa desde a infância carrega um modo de viver que atravessou gerações em Coqueiros, uma tradição que resiste apesar das pressões econômicas, do avanço das olarias industriais e das limitações impostas pelo envelhecimento e por um AVC que alterou parte de sua mobilidade. Ainda assim, ela insiste, continua produzindo e ensinando.
Na simplicidade do quintal onde trabalha, Maria acende o fogo com o mesmo cuidado de quem reaviva um mundo. A queima da cerâmica, porém, tornou-se um ato de resistência. Hoje ela já não pode mais realizar o processo em casa por causa da fumaça, proibição que contrasta com a permissividade dada às olarias da região, que funcionam sem as mesmas restrições. A desigualdade é apenas um dos muitos atravessamentos que as ceramistas tradicionais enfrentam, levando muitas delas a abandonar ofícios milenares.
Mesmo assim, Maria permanece. E, quando ensina crianças e jovens nas oficinas realizadas no Sítio Ecológico Gamboa do Jaguaribe, no litoral de Natal, ela compartilha uma sabedoria que não está apenas nas formas, mas nos rituais, no respeito aos mais velhos e na compreensão de que o barro, antes de ser arte, é ancestralidade viva.
Foi nesse cenário que o diretor, roteirista e documentarista Fábio de Oliveira (Ta’angahara) a conheceu, em 2021. Para ele, o primeiro encontro revelador:
“A primeira coisa que veio à mente foi: essa pessoa tem muita história para contar”, lembra em entrevista à Agência Saiba Mais . O filme não surgiu de um plano, mas de uma convivência. Do Catimbó às cantorias, das conversas no terreiro aos aniversários celebrados no quintal de Maria, a relação se transformou em amizade, e a amizade, em cinema.
O documentário “Maria Fogo”, que estreiou no Poti Sesc de Cinema no Teatro Sandoval Wanderley no último mês, nasce de um gesto político e afetivo: registrar a trajetória de uma mulher negra, idosa, trabalhadora e guardiã de um conhecimento ancestral.
A produção, contemplada pelo edital Poti Sesc Cultural 2024, é assinada por uma equipe integralmente racializada, o que, segundo o diretor, era fundamental para evitar distorções de perspectiva e para garantir que a narrativa fosse construída por pessoas que compartilham de vivências e cosmopercepções semelhantes à da protagonista. “Somos um aquilombamento artístico”, afirma Ta’angahara. “Profissionais indígenas, negros, LGBTQIAPN+, PCD… isso faz com que o processo seja fluido e horizontal, sem hierarquias impostas.”
O filme aborda não só a técnica da cerâmica, mas também as contradições vividas por Maria: o desrespeito à sua prática, o apagamento cultural, a falta de apoio institucional e as marcas do envelhecimento em uma sociedade frequentemente etarista.
O diretor destaca o impacto de registrar a trajetória de uma mulher que, mesmo atravessada por violências sociais e familiares, permanece criando e ensinando. “Nossa sociedade tem várias Maria Fogo”, diz. “Documentá-la é um ato de reconhecimento e de preservação.”
Fotos: Juliana Amorim
O audiovisual, para ele, cumpre também um papel de memória: “Armazenar saberes em formatos diversos faz com que comunidades e pessoas de fora delas compreendam a importância dessas narrativas”, comenta.
Fábio de Oliveira (Ta’angahara) é indígena em contexto urbano, candomblecista, juremeiro, ambientalista, escritor e documentarista. Formado em Audiovisual pela UFRN, especialista em Turismo, Cultura e Literatura, e mestrando em Antropologia Social. Integra o Sítio Histórico e Ecológico Gamboa do Jaguaribe, o CONSEPPIR/RN e o NEAB do IFRN. “Maria Fogo” é seu quinto documentário, após obras como Jaguaribe (2025), Warao: tecendo diálogos de igualdade (2022), Minhas Narrativas Imagéticas (2022) e Guaiá (2018).
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