Casos reincidentes de violência sexual contra crianças e adolescentes, prisão de abusadores e operações de combate ao abuso infantojuvenil invadem diariamente o noticiário e apontam para uma realidade ainda não captada em sua totalidade. Apenas nos últimos quatro anos, o crime de estupro de vulnerável contra menores de 0 a 17 anos cresceu 106% no Rio Grande do Norte. Enquanto em 2020 foram registrados 439 casos, em 2023 chegou a 907. Para especialistas ouvidos pela TRIBUNA DO NORTE, a estimativa é que esse número seja ainda maior devido a subnotificação de situações de violação de menores.
Os dados são da Secretaria de Segurança Pública do Estado (Sesed/RN) e apontam, ainda, para o registro de 251 casos de estupro apenas de janeiro a maio deste ano. De acordo com a delegada Helena de Paula, da Delegacia Especializada na Proteção da Criança e do Adolescente (DPCA) de Natal, os números de abusos sexuais contra menores ainda é camuflado pela subnotificação e em muitas situações isso se deve ao fato de que os agressores são pessoas próximas ou da família da vítima, dificultando a denúncia. Outro ponto em comum, sobretudo no público infantil, é a ausência de consciência do menor de que está sendo violado.
Nos últimos anos, contudo, ela observa que a implantação de duas novas DPCA’s no Estado, localizadas em Parnamirim e Mossoró, somada às novas Delegacia da Mulher (DEAM’S) que acolhem a faixa-etária infanto juvenil são algumas medidas que favoreceram a chegada de mais casos às autoridades. “Esse movimento de conscientização por parte dos órgãos de saúde, de fazerem a notificação à delegacia desses casos para que sejam apurados, também é muito relevante porque muitos não chegam à Polícia”, conta a delegada.
O assessor técnico do Cedeca Casa Renascer, instituição voltada à defesa dos direitos humanos de crianças e adolescentes no Estado, Gilliard Laurentino, diz que a subnotificação é um desafio para a rede de proteção e que é observada em dados nacionais. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a estimativa é que apenas 10% dos crimes chegam à política pública, seja por meio das secretarias de saúde, delegacias, conselhos tutelares, ou assistência social. O Ministério da Justiça, por sua vez, evidencia um percentual ainda menor de 7,5%.
Laurentino adverte, nesse sentido, que o cenário de violação contra menores no Estado é ainda pior. Por conta disso, principalmente a partir dos anos 2000, o país vem buscando incentivar iniciativas para a denúncia, o que pode explicar a crescente de registros dos crimes. É o caso da campanha Faça Bonito, que mobiliza o país anualmente de abril a maio. “A gente tem esses dois caminhos: o primeiro é que está chegando mais [notificação] porque estamos fazendo mais denúncias, [enquanto o segundo] é que a gente não sabe o real, estatisticamente falando, em 90% dos casos”, esclarece.
Nas DPCA’S do Estado, observa a delegada Helena de Paula, as denúncias chegam pelos disques-denúncia 100 e 180, conselhos tutelares, escolas e relatos espontâneos de vítimas que procuram as unidades. Uma vez identificados os crimes, a Polícia Civil inicia medidas urgentes com foco na retirada do menor do contexto de violência e sua proteção durante as investigações. É o caso dos pedidos de prisão preventiva e encaminhamento da criança para uma instituição de acolhimento, sendo esta última mais comum nas situações que o agressor convive com a vítima no mesmo ambiente.
Perfil das vítimas e estrutura da rede
Se, por um lado, poucos casos chegam à política pública, por outro, a rede de atenção às vítimas atende menos do que deveria. O último boletim do Ministério da Saúde sobre as notificações de violência sexual contra crianças e adolescentes, publicado em 2023, aponta que até dezembro de 2021 o Rio Grande do Norte contemplava apenas 23 serviços de atenção às pessoas em situação de violência Sexual. O dado engloba a atenção integral às pessoas em situação de violência, atenção ambulatorial, Interrupção legal da gravidez e coleta de vestígios.
Gilliard Laurentino, do Cedeca Casa Renascer, analisa que o número é baixo e está associado, ainda, à desarticulação da rede de atenção à saúde na notificação dos casos de vítimas de violência. O resultado disso não poderia ser outro: a divergência entre as informações do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) com os das delegacias, assistência social e do conselho tutelar.
Segundo ele, o cenário resulta da frágil capacitação dos profissionais para lidar com casos de violência sexual, além da pouca distribuição e infratesturtura dos serviços para permitir o trabalho adequado. “Quando a gente olha para o território de Natal, a gente tem um conselho tutelar para cada região, para uma quantidade de população muito alta”, aponta.
Seguindo a realidade nacional, no Cedeca as pessoas assistidas são majoritariamente adolescentes do sexo feminino e que passaram pela reincidência da violência. De acordo com Gilliard Laurentino, o principal foco da instituição está em acolher e fornecer atendimento na área de psicologia às vítimas, a fim de que elas aumentem a capacidade de ressignificação e resiliência.
Apesar dos projetos serem voltados para o acolhimento das vítimas no período de seis meses a dois anos, há casos em que a criança/adolescente sai mais cedo e outros em que ela ultrapassa o tempo estipulado devido às dificuldades para encarar os traumas. “Têm um fenômeno que também nos chocou muito: normalmente, ela sai do Cedeca por uma ressignificação da violência, mas sua audiência é anos depois. E aí naquele período, a gente sabe que ela vai ter uma recaída”, complementa.
A psicóloga Fabiana Lima, que atua na Maternidade Januário Cicco (Mejc/UFRN/Ebserh), referência no acolhimento de vítimas de violência do sexo feminino a partir dos 12 anos, adverte que na maioria dos casos as crianças e adolescentes desenvolvem estresse pós-traumático, dores de cabeça, tonturas, quadros de ansiedade, fobias, medos e podem tentar o suicídio. O quadro é intensificado, muitas vezes, pelo fato de que a maior parte dos agressores são pessoas próximas ou da família. Nesses contextos, o receio da retaliação tende a aumentar.
Para auxiliar nos cuidados dos pacientes, o projeto “Proama” da Mejc conta com atendimento multiprofissional. A equipe reúne psicólogos, médicos, enfermeiros e assistente social que atuam na escuta e identificação das melhores formas de intervir em cada situação junto às vítimas. Em sua maioria, as adolescentes já chegam até à Maternidade encaminhados por outros serviços, como as unidades básicas de saúde (UBSs) e conselhos tutelares. Dentro dessa busca por atendimento, vale apontar, muitas delas sofrem com a desinformação e migração por variados serviços até serem atendidas.
Ela reitera ser indispensável qualificar continuamente os profissionais de saúde e ampliar a melhor articulação da rede. “A saúde tem seu papel, mas precisa estar trabalhando em conjunto com todos os outros, para que o acompanhamento e a garantia de direitos se efetive e essa criança e adolescente possa sair desse lugar de violência”, argumenta.
Embora reconheça o trabalho desenvolvido pelo Hospital Universitário Ana Bezerra (Huab/UFRN/Ebserh) junto a outros serviços como o Creas, Jacicleuma Márcia da Silva, assistente social na Unidade, também defende a habilitação de mais serviços. “Para uma pessoa se deslocar, por exemplo, 200/300 km para um atendimento dessa natureza é difícil, então se tivéssemos outros pontos considero que conseguiremos fortalecer um pouco mais a assistência”, completa.
A delegada Helena de Paula vai um pouco além e explica ser preciso, além das políticas de acolhimento à criança e ao adolescente, iniciativas direcionadas à educação sexual nas escolas. Isso porque esses espaços geralmente são os únicos freqüentados pelas vítimas fora do contexto de agressões e, a partir de campanhas e iniciativas de acolhimento, favorecem a revelação espontânea das crianças e adolescentes sobre o que estão passando.
Números
Estupros de menores de 0 a 17 anos no RN:
2020: 439
2021: 519
2022: 666
2023: 907