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Natal apaga sua própria memória

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O Edifício Café Filho, localizado na Esplanada Silva Jardim, no limite entre os bairros da Ribeira e das Rocas, resiste ao tempo como um corpo marcado pela história, mas também pelo abandono. Projetado pelo arquiteto carioca Raphael Galvão Júnior, o prédio foi originalmente concebido para ser a sede do antigo IPASE (Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado). Inaugurado em 1955, durante a presidência do norte-rio-grandense João Café Filho, foi celebrado como a obra arquitetônica mais moderna de Natal.

Passadas sete décadas, o que um dia simbolizou o “anseio de progresso” da cidade tornou-se uma metáfora do “apagamento” da memória arquitetônica, artística e urbana da cidade – “uma marca corrente da capital dos potiguares”, na opinião do historiador João Maurício Gomes Neto.

Do “suntuoso edifício que, pela pureza de suas linhas modeladas em arte moderna, vem titular a nossa cidade no nível de progresso a que ela está fadada”, como descreveu à época o extinto “Jornal de Natal”, restou só um esqueleto de concreto armado, cercado de tapumes, sob cuja marquise vivem atualmente dezenas de pessoas em situação de rua.

Prédio histórico que um dia foi considerado “o mais moderno da cidade” abriga atualmente dezenas de pssoas que vivem em situação de rua. Foto: Alisson Almeida

O abandono estrutural do edifício de seis andares, no entanto, não é a única marca dessa “cultura do apagamento” da memória natalense: o painel em mosaico que ornamentava a fachada do prédio, assinado pelos artistas potiguares Newton Navarro (1928-1992) e Dorian Gray Caldas (1930-2017), tidos como os precursores da modernidade artística no Rio Grande do Norte, também foi condenado ao desaparecimento.

Painel em mosaico de Newton Navarro e Dorian Gray no antigo Edifício Café Filho, simbolo do modernismo de Natal, inaugurado em 1955 no bairro da Ribeira. Foto: Elisa Elsie

A obra foi ocultada por uma parede de alvenaria erguida no dia 15 de julho pela Secretaria Municipal de Infraestrutura (Seinfra). Em nota, a pasta justificou que a proteção visava “evitar qualquer dano” ao painel.

De acordo com a Seinfra, “todos os cuidados foram tomados para a preservação do patrimônio cultural e artístico da cidade”.

“O trabalho foi iniciado com a limpeza da arte. Em seguida, foi feito o isolamento com lona preta e madeirite, sendo posteriormente coberto com outra lona externa e, por fim, foi construída uma parede para evitar qualquer dano”diz a nota da pasta.

Placa da Prefeitura de Natal anuncia a reforma que nunca aconteceu. Foto: Google Maps

O edifício pertencia à União, mas foi cedido à Prefeitura de Natal em 2020 para abrigar o que seria a futura sede da Secretaria Municipal de Saúde (SMS). Uma antiga placa fixada em frente ao prédio anunciava a reforma que nunca aconteceu.

Procurada pela reportagem da Agência Saiba Maisa pasta não respondeu nosso questionamento sobre se há alguma previsão de quando a reforma do prédio será iniciada, tampouco sobre quando seria concluída.

A cena do muro ocultando o painel que adornava aquele que já foi o edifício mais moderno da cidade simboliza uma realidade que se tornou comum à capital potiguar, que assiste mais uma vez à sua história sendo escondida.

O ocultamento do painel de Newton Navarro e Dorian Gray não é apenas o reflexo do desleixo com o nosso patrimônio artístico, mas um sintoma da pouca importância que o poder público dá à história, à identidade cultural e a esses artistas que, em certa medida, forjaram a paisagem imaginária de Natal.

Natal é vítima de um “pacto sinistro de irresponsabilidade cultural”, diz artista plástico

Para o artista plástico César Revorêdo, o abandono do Edifício Café Filho e do painel de Newton Navarro e Dorian Gray é a síntese do que ele define como “uma espécie de pacto sinistro de irresponsabilidade com nossas referências artísticas, culturais e históricas”.

Para ele, no entanto, essa “irresponsabilidade cultural” não tem a ver com a “mentalidade do povo natalense”, como às vezes se insinua, atribuindo-se à população um certo desinteresse pelo patrimônio artístico da cidade”.

A culpa, na opinião do artista, é dos grupos que há décadas se revezam na gestão da capital, mas não cuidam da história, da memória e da identidade cultural de Natal.

César Revorêdo, artista plástico. Foto: Alisson Almeida

“A nós só resta a impotência, só resta lamentar essa situação, como nós estamos fazendo agora. O mais preocupante é o estado de total abandono em que se encontra a arte, a arquitetura e tudo o que diz respeito à história da cidade”, refletiu.

César Revorêdo afirma que o abandono do edifício, bem como do painel dos dois expoentes do modernismo potiguar, é só mais um exemplo desse descaso institucionalizado com o patrimônio histórico de Natal.

“Navarro, que já era mais experiente em 1955, se juntou com o jovem Dorian Gray para construir aquele painel lindo, que contava um pouco da própria mentalidade daquele momento de namoro firme da cidade com o modernismo. É como se a gente estivesse com Alzheimer, entendeu?”, disse o artista, em alusão ao esquecimento contínuo da história de Natal.

O artista plástico disse, ainda, que esse “desapego” com a nossa história, além de negligência, é fruto do “alheiamento” em relação àquilo que, ao longo dos anos, fez parte do processo constitutivo de Natal.

“Então, esse painel é muito mais do que uma obra de arte. Ele é um testemunho, o registro de uma época, a sinalização de um momento que diz: ‘Nós já fomos isso aqui, pode até mudar, mas esse aqui foi nosso ponto de partida’”, refletiu, reafirmando a importância do esquecido mosaico de Newton Navarro e Dorian Gray.

A memória de uma modernidade constantemente sonhada

Para o mestre, doutor e pós-doutorando em História pela UFRN, João Maurício Gomes Neto, a discussão sobre o Edifício Café Filho e a preservação do painel de Newton Navarro e Dorian Gray “é, curiosamente, causa e sintoma do processo que tem a ver com a formação de Natal”.

“O projeto de uma Natal moderna é reatualizado de maneira tão frequente que quase nada sobrevive a ele, nem mesmo a própria memória de uma modernidade constantemente sonhada, projetada no horizonte e depois materializada em ações diversas – como na especulação imobiliária, na invasão de praias por construções edificadas, no aterramento do mar para dar vazão aos nossos anseios de lazer, na proposição de parques de concreto que a tornaram e a tornarão cada vez mais uma cidade que precisa destruir para se reconstruir e se imaginar ‘moderna’”, analisou.

Para o historiador, esse “complexo de incompletude moderna” que permeia o imaginário a respeito da capital potiguar é “tão colonial quanto atual”, “ampliado pelo desejo reiterado de modernização que atravessa suas elites – mas não somente –, ao mesmo tempo que evidencia a ausência de cuidado em preservar a memória dos saberes e fazes das pessoas que a construíram e a constroem”.

Para historiador, Natal sofre de um “complexo de incompletude moderna”. Foto: Cedida

“Nisto se inclui, paradoxalmente, aquilo que foi legado por parte de suas elites modernizadoras de outrora”, apontou, acrescentando que

João Maurício também questionou o “aparente alheiamento” do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN-RN) sobre a discussão se tanto o Edifício Café Filho quanto o painel de Newton Navarro e Dorian Gray poderiam ser considerados como “patrimônio histórico”.

“No âmbito da memória e do patrimônio, que caminham de mãos dadas com ciência histórica, cabe destacar que um dos critérios fundamentais para definir o que é ou não passível de ser patrimonializado passa pela perspectiva do reconhecimento e da identificação pública do valor simbólico de memória que tais bens e/ou monumentos têm para a cidade”, explicou.

O historiador observou, ainda, que o discurso recorrente de modernização é invocado, muitas vezes, como pretexto para destruir, descaracterizar ou simplesmente esconder os marcos, os símbolos e as referências da cidade.

“Em um cenário onde o anseio pela modernidade futura costuma apagar os rastros do passado, no que se inclui a própria trajetória de formação dessa espacialidade, o debate em torno da conservação e da preservação dos bens em tela parece explicar o motivo pelo qual o apagamento é uma marca corrente na capital dos potiguares”, completou.

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