Com bastante horror, li a notícia sobre o triste episódio sofrido pela professora Sueli Santana, da rede municipal de Camaçari, região metropolitana de Salvador.
Aliás, foram vários episódios. A professora, que também é adepta do Candomblé, sofreu reiteradas agressões de determinados alunos: segundo seu relato, eles se incomodavam ao vê-la em seus trajes de branco às sextas-feiras (em homenagem ao orixá Oxalá), colocavam um exemplar da bíblia em sua mesa, citavam versículos e a chamaram, ofensivamente, de “bruxa” e “macumbeira”. Não bastando toda essa opressão psicológica, a perseguição à professora Sueli culminou na lamentável e criminosa atitude de apedrejá-la e atentar contra sua integridade física.
Sim, Conrad, o horror! Li essa notícia sentindo-me em plena Inquisição medieval (embora a perseguição às mulheres seja muito mais antiga). E como se não bastasse todo o absurdo do racismo estrutural e da intolerância religiosa que essas crianças (tristes projetinhos de fascistas) tão precocemente já ensejam, mais angustiante ainda foi a medida tomada pela direção da escola e a Secretaria de Educação: “orientaram” a professora a parar de usar o livro ABC Afro Brasileiroutilizado nas aulas – obrigatórias por lei – de cultura afrobrasileira. De vítima, a professora foi transformada em responsável pela própria perseguição e, mais uma vez, observa-se outra das inumeráveis situações em que a censura a livros caminha lado a lado com expressões típicas da extrema direita, tal como discursos de ódio.
A filósofa Judith Butler, especialmente no livro Discurso de ódio: uma política do performativo (tradução de Roberta Viscardi, pela editora da Unesp), ajuda-nos a compreender – e combater – essas práticas em que, ultrapassando a esfera do verbal, o próprio ato de dizer performatiza um ato ofensivo que visa ameaçar, degradar e rebaixar. E uma outra forma de enfrentar e combater casos assim também passa pela dimensão verbal e discursiva: trata-se do que Butler, na mesma obra, designa “ressignificação”.
Na ressignificação, ofensas e injúrias proferidas por indivíduos e grupos para outros os quais não se enquadram em sua ordem e visão de mundo podem e devem ser ressignificadas numa atitude não só de reformulação semântica como também de enfrentamento pragmático e político.
Arquivo: Haroldo Barbosa.
O convite à ressignificação é, portanto, o convite a um gesto de resistência e empoderamento contra formas clássicas de opressão. Desfaçamos o teor originalmente ofensivo atribuído a tais termos (assim como “bichas”, “vadias” e outros) num gesto de resistência a velhos quadros de poder. Sejamos, pois bruxas e macumbeiras com muito orgulho!
Que haja punição jurídica e penal aos horrores infligidos à professora Sueli Santana no exercício de sua profissão. Estamos com você, colega! Muito axé pra você!
E Êpa Babá!