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Serra do Mel disputa transição energética justa

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No coração do semiárido potiguar, o vento sempre foi parte da vida. Ele sopra pelas plantações de cajueiros, espalha o cheiro da castanha torrada e refresca a pele que o sol castiga. Nos últimos anos, porém, esse vento ganhou outro destino: foi medido, cercado e vendido. Hoje, em Serra do Mel, 334 torres brancas, distribuídas em 36 parques eólicos, recortam o horizonte, girando dia e noite na promessa de um futuro mais verde.

Mas, para quem vive no município, a paisagem mudou mais rápido do que as certezas. Entre expectativas de renda, empregos e desenvolvimento, cresceram também dúvidas, denúncias e um embate sobre como — e para quem — se dará a transição energética no Brasil.

Na última semana, representantes de comunidades, sindicatos rurais e movimentos sociais participaram, em Natal, de um encontro ampliado sobre os impactos das energias renováveis no estado líder em sua produção, com 289 parques já em operação e mais 20 em construção. O objetivo foi construir propostas para a Mesa de Diálogo da Presidência da República, espaço criado para debater e encaminhar demandas diretamente ao governo federal.

Foto: Fetan

A pauta das comunidades não é contra a transição energética. Ao contrário: a reivindicação, de moradores e agricultores, é que ela seja “justa, responsável e sustentável, respeitando territórios e comunidades”. É o que reforça Antônio Megale, advogado que assessora juridicamente a CUT-RN (Central única dos Trabalhadores), FETARN (Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Rio Grande do Norte) e SAR (Serviço de Assistência Rural e Urbano) em uma ação civil pública que questiona os contratos e os processos de implantação dos parques eólicos na região.

Relatos indicam a existência de contratos abusivos de cessão de uso que comprometem as terras de agricultores familiares, sem garantias de remuneração justa nem de continuidade da produção agrícola. Além dos impactos sociais na vida comunitária, as torres, quando instaladas próximas às casas, podem causar efeitos negativos à saúde, reforçando críticas à lógica extrativista que trata os territórios apenas como fonte de recursos, sem oferecer retorno real para quem neles vive.

““Muitos agricultores relatam impactos na produção dos cajueiros e baixa remuneração nos contratos assinados com a empresa. Informam que, no início, quando da assinatura dos contratos de cessão das terras, foram prometidos valores mais altos e que, agora, os valores estão muito reduzidos. Os agricultores também reclamam da falta de transparência quanto aos valores e contratos e falta de informações da empresa. Outros problemas são a falta de acesso ao crédito em bancos e a perda de segurado especial como agricultor familiar, quando do requerimento de aposentadoria”, afirma.

“A empresa não tem transparência”

Para Antonio de Sousa, presidente da Associação de Moradores da Vila Piauí, o sentimento predominante é de frustração. Ele afirma que as empresas chegaram em 2011 prometendo mudanças profundas na vida dos agricultores, mas as promessas não se concretizaram.

““No começo, diziam que a gente não ia mais precisar de crédito fundiário, nem se preocupar com aposentadoria, porque receberíamos de cinco a seis mil reais por mês. Nunca chegamos perto disso. Quando pedimos notas fiscais, elas vêm com manchas para esconder valores. E desde 2020 não há prestação de contas. Falta transparência”, denuncia.

Antonio relata ainda que muitas famílias perderam o acesso às suas áreas. “Em algumas vilas, como a Ceará, não se pode mais criar abelhas ou plantar melancia, feijão e caju. Nas propriedades por onde passam linhas de transmissão, deixaram porteiras abertas, causando fuga de animais. Não investiram em projetos sociais. O que prometeram, não cumpriram nem um terço.

A vida, segundo ele, continua baseada no trabalho com a cajucultura e a produção artesanal de castanha, mesmo após a chegada das eólicas. “A gente sobreviveu a secas severas, como a de 1993, trabalhando e resistindo. ”

“As comunidades não estão sendo respeitadas”

A Secretária Nacional de Políticas Sociais e Direitos Humanos da CUT, Jandyra Uehara Alves, que acompanha o tema ao lado da FETARN e do SAR, é enfática: a forma como as eólicas têm se instalado no RN desrespeita direitos econômicos, sociais e ambientais das comunidades rurais e tradicionais.

Segundo ela, a ausência de regulamentação específica para o setor facilita a atuação predatória das empresas, muitas delas multinacionais. “Firmam contratos abusivos de cessão de uso ou arrendamento de 100% das terras, prometendo remuneração alta que não se concretiza, comprometendo a agricultura e sem realizar consultas prévias, livres e informadas, como manda a lei. Também não respeitam distâncias adequadas entre torres e residências, o que gera danos à saúde. ”

Ela destaca que os empregos gerados são, na maioria, precários e temporários, restritos ao período de construção. “Depois da instalação, restam poucos postos para manutenção, e a média salarial nos municípios não se altera”. Além disso, Jandyra alerta que a “cessão de 100% da posse da propriedade também implica em restrição de direitos aos produtores rurais da agricultura familiar, como perda da qualidade de segurado especial e restrição a crédito”.

O desafio, aponta, “é construir um outro modelo de implantação, que rompa com a lógica extrativista e traga retorno real para as comunidades, garantindo trabalho decente e participação social. ”

““Para uma transição energética justa é preciso um outro modelo de implantação desses projetos, que respeite os direitos dos trabalhadores e das comunidades atingidas. É preciso romper com a lógica extrativista que trata os territórios apenas como fonte de recursos a serem explorados, sem retorno real para as comunidades. A transição energética justa exige que toda a comunidade tenha voz, participação e benefícios concretos, e que seus direitos sejam respeitados desde o planejamento até a execução dos projetos”, ressalta.

Impactos e disputas

Para Erivam do Carmo Silva, presidente da FETARN, os problemas se acumulam. Ele cita impactos ambientais, como abertura de estradas, destruição de vegetação nativa e ruídos, e sociais, como aumento de casos de ansiedade e pânico. Questiona também a transparência nos contratos e a intermediação de advogados que, segundo ele, recebem porcentagem sobre os valores pagos às colônias, mas atuam em defesa das empresas.

““O que é produzido pelas eólicas aqui corresponde a cinco vezes o consumo do estado. Em tese, a energia deveria ser mais barata, mas esse preço subsidiado vai para grandes shoppings e outros consumidores do mercado livre. Além disso, houve isenção fiscal de R$ 256 milhões para uma única empresa, a Voltalia”, aponta.

Ainda assim, Erivam reconhece avanços recentes na organização comunitária, como maior segurança para os moradores, entrada da Defensoria Pública em ações judiciais e previsão de perícia técnica nas áreas afetadas.

Uma visão diferente

Mas nem todos compartilham a mesma leitura sobre a presença das eólicas. Para Crispiniano Neto, morador da Vila Amazonas e liderança local, a chegada dos empreendimentos trouxe estabilidade de renda e melhor qualidade de vida. Ele lembra que, antes, a economia dependia exclusivamente da cajucultura, sujeita às variações do clima.

““Passamos a ter uma renda certa o ano inteiro, de seca a inverno. Ninguém ficou rico, mas não há mais colono no Mapa da Fome. Criamos um modelo único, em que a renda de cada vila é dividida igualmente, mesmo para quem não tem aerogeradores. O PIB per capita saltou de R$ 7 mil para R$ 70 mil. Temos o menor índice de pobreza rural do Nordeste”, afirma.

Para ele, críticas como queda na produção agrícola, fuga de abelhas ou doenças provocadas pelas torres não correspondem à realidade local. “O que mais nos agride é a falta de respeito pela nossa autonomia. Nós discutimos contrato por mais de um ano antes de aceitar as empresas. Rejeitamos propostas que não atendiam aos nossos critérios. O que precisamos agora é ampliar benefícios, ter mais parques nas vilas que não têm e garantir energia mais barata para a produção. ”

O que está em jogo

O documento “Nossa Luta e Nossas Proposições”, elaborado por comunidades e organizações, lista reivindicações como: regulamentação dos empreendimentos para garantir direitos, contratos justos, compensações socioambientais, distanciamento mínimo das torres em relação às casas, e participação das comunidades no planejamento.

Entre as propostas, está a criação de um fundo para reparação de danos, exigência de consultas prévias e retomada da política de preço mínimo da castanha de caju. Também pedem que a energia produzida nas áreas seja vendida a preços mais acessíveis para agricultores e que haja incentivos para beneficiamento local, gerando empregos permanentes.

Respeito às comunidades

A deputada federal Natália Bonavides (PT-RN), que acompanha o tema, defende que as mesas de diálogo avancem para estabelecer parâmetros claros que impeçam abusos e garantam retorno social e econômico. “A chegada da energia eólica não foi sem impactos. Defendemos a transição energética e queremos que o debate sobre os empreendimentos eólicos e solares tenha salvaguardas e compensações para os impactos sociais e ambientais que esses processos envolvem no RN. ”

Foto: Fetan

A posição do governo federal

Para o coordenador-geral da Diretoria de Mesas de Diálogo da Secretaria-Geral da Presidência, Fábio Tomaz, a visita de campo ao RN foi positiva por permitir ouvir, presencialmente, os diferentes atores e realidades.

““Ninguém é contra as energias renováveis, mas há a necessidade de um modelo mais eficiente e adequado para se implementar. Há muitas limitações no âmbito dos contratos entre pequenos proprietários que fazem a cessão de seus terrenos às empresas, como remuneração abaixo do prometido pelas empresas, falta de transparência da composição de valores, cláusulas muito restritivas, atuação de advogados atravessadores que retêm parte das compensações e potenciais inseguranças jurídicas diante da seguridade social e restrições ao acesso a créditos agrícolas. Há alegações em impactos na saúde que estamos avaliando”, afirma.

Foto: Fetan

Segundo ele, o relatório final vai buscar “traduzir essas insatisfações em recomendações para qualificar as normativas, ampliar a justiça das compensações e fortalecer as boas práticas já existentes”. As primeiras devolutivas, garante, serão para as próprias comunidades.

Tomaz explica que as recomendações serão encaminhadas a ministérios e órgãos competentes, e que o processo envolve articulação contínua com governos estaduais, legislativo e sistema de justiça. “A transição energética não trata apenas de descarbonização, que não pode ser feita às custas de impactos sociais, ambientais e na saúde das populações. Nosso trabalho é garantir que ela seja economicamente viável, ambientalmente sustentável e, principalmente, socialmente justa. ”

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