|
Getting your Trinity Audio player ready...
|
O que uma namorada espera ganhar no Dia dos Namorados? Flores, bombons, uma joia, um ursinho?! Uma carta apaixonada, um álbum de fotos dos momentos mais legais, um pedido de noivado?! Ou seria um olhar, daqueles que dizem tudo?! A melhor dança, o melhor abraço, o beijo mais quente, a transa mais apaixonada?!…
Não foi nada disso que Carmen de Oliveira Alves, uma Travesti de 26 anos, recebeu neste último dia 12 de junho, Dia dos Namorados. Neste dia, “imagens de câmera de segurança (…) mostram que ela saiu da Unesp, entrou na residência do namorado, mas não saiu do local.” – diz o portal G1. Sabe por quê? Porque ela foi assassinada.
Parece que para Marcos Yuri Amorim, seu namorado, “era mais fácil, era mais vantajoso cometer um crime e ser preso do que assumir um relacionamento com sua namorada Travesti.”
E isso diz mais sobre a nossa sociedade do que gostaríamos de admitir.
Quantas vezes, em silêncio, o amor por uma Travesti é sufocado antes mesmo de nascer? Quantas vezes o medo de ser visto ao lado de uma Travesti pesa mais que a vontade de construir uma história juntos? O caso de Carmen não é uma exceção isolada. É um reflexo brutal de um padrão que se repete: o corpo da Travesti é desejado no escuro, mas rejeitado à luz do dia.
Lembrei de uma entrevista dada pela atriz Gabriela Medeiros, Travesti que fez o papel de Buba na nova versão da novela Renascer, em um Conversa com Bial: “Eu sinto que sou sempre o presságio. Me sinto sempre efêmera… A pessoa sempre vem com a curiosidade, o fetiche. Nunca um lugar de afeto… Espero realmente um dia ser o sol de alguém”, declarou ela que revelou que nunca se sentiu amada por um parceiro.
Raramente sentimos isso, e, na maioria das vezes, sentimos e mantemos esse sentimento na clandestinidade. Ser clandestina, estar no anonimato é recurso de sobrevivência – entendo essa questão hoje, mais que nunca, apesar de me revoltar com ela.
Ser uma Travesti no Brasil é caminhar quase nunca com dignidade em uma estrada onde o preconceito é asfaltado todos os dias. É viver sabendo que o amor pode virar violência, que o afeto pode virar sentença, que a vida pode ser interrompida só por existir, por ousar ocupar um espaço que muitos ainda acham que não lhe pertence – o espaço das afetividades!
A morte de Carmen não é apenas uma tragédia pessoal. É também um sintoma social. Ela escancara o quanto ainda somos incapazes, como sociedade, de lidar com as múltiplas formas do amor e da identidade. O quanto ainda estamos imersos em uma cultura machista, transfóbica e hipócrita, onde o desejo é criminalizado e a diferença é punida com o apagamento, muitas vezes literal.
Por que tantos homens que se relacionam com Travestis ainda se escondem? Por que ainda se sente vergonha em amar alguém que não performa o que a sociedade convencionou como “mulher de verdade”? A resposta está nas estruturas que moldam o que entendemos como identidade, afeto e pertencimento. A masculinidade hegemônica, frágil e autoritária, não permite brechas. Um homem que ama uma Travesti, para muitos, é um homem que “deixou de ser homem”, como se isso fosse uma falha, uma perda de valor social.
Esse episódio me atravessou de forma muito brutal! Desde que soube do caso que tento processar o tamanho do asco, do nojo, do medo, do ódio, da vergonha, da monstruosidade, da aberração, da desumanização com os quais um corpo Travesti é revestido. Desde então tento processar isso. Como meu corpo, nossos corpos Travestis são lidos por uma sociedade que entende que nos matar parece ter mais dignidade do que assumir que nos ama.
Amar uma Travesti e tornar esse amor público se torna um ato subversivo. Não por culpa dela, mas porque o mundo ainda prefere vê-la morta a vê-la feliz. E uma Travesti feliz, realizada e, sobretudo, viva incomoda muita gente! Acreditem em mim! Sou prova (ainda viva) disso!
Esse episódio, nada isolado, me atinge como uma pedrada, uma bolada no estômago! Quanto vale a vida de uma Travesti!? Quanto vale minha vida!? Vale tanto quanto a vida de qualquer ser humano?! É preciso reconhecer: neste país, ela sempre foi e tem sido constantemente desvalorizada. Não só quando um corpo é encontrado sem vida, mas também quando esse corpo é invisibilizado nos livros, nas novelas, nas salas de aula, nos hospitais, nos lares… Quando é ridicularizado, criminalizado, abandonado e seu assassinato não provoca nenhum tipo de comoção social.
Falar sobre isso me dói profundamente, porém é urgente. Carmen deveria estar viva. Deveria ter ganhado flores, uma carta de amor, um beijo apaixonado, aquele olhar. E nenhuma de nós deveríamos ter ou viver com medo dos nossos amores, dos nossos afetos. Em vez disso, ela virou mais um número nas estatísticas da violência contra Travestis no Brasil, país que lidera o ranking mundial de assassinatos de pessoas Trans. Quantas mais?!
Não precisamos de mais lutos. Precisamos de transformação. De políticas públicas, de educação afetiva (sim, afetiva!), de segurança, de representação, de acolhimento. Precisamos ensinar a essa sociedade adoecida desde cedo que não há vergonha em amar uma Travesti. É, como qualquer outro amor, uma escolha legítima e linda como deveriam ser todos os amores românticos e romantizados.
E, acima de tudo, precisamos garantir que Travestis possam viver, amar e ser amadas com liberdade. Que nenhuma outra Carmen tenha que pagar com a vida pelo preconceito alheio.
Porque ser namorado de uma Travesti não deveria ser um ato de coragem.
Deveria ser só de amor.
